Teatro Brasil Mambembe

‘a mulher tem que negar sempre; uma vez, eu estava com uma na cama quando o marido dela entrou no quarto. Ela negou com tanta veemência que até eu fiquei em dúvida’.(Boca de Ouro, Nélson Rodrigues)

Este simplório blogueiro arriscou umas linhas de dramaturgia pra homenagear o “anjo pornográfico”, no maior dramaturgo, citado na epígrafe. Sem pretensões, e com muito respeito e humildade.

CENA 1

-Sérgio, que porra é essa? (mulher mostra uma cueca com mancha de batom)

– Isso o que?

– Essa cueca tua, com marca de batom!

– Menas, mulher, menas…Quem disse que essa cueca é minha? Ah….não me venha criar falsos escandalos, por favor…E quem garante que isso é batom? Pode ser mancha de vinho, catchup…Que idéia besta essa tuam, que balão vazio…

– Mancha de vinho? Com o cortorno dos lábios? Canalha! E essa cueca tava no nosso cesto de roupa suja, seu safado!

– E daí? Vai ver a faxineira se confundiu e deixou a cueca do marido lá…e a cueca ainda é branca e transparente…Eu nunca uso cueca transparente, não gosto de transparência…..Deixa de show, de sensacionalismo, ora…

– Mas é daquelas do jogo de cuecas bordadas com as tuas iniciais, da nossa lua de mel, seu traste!

Já disse que não é minha…vai que que foi algum hacker que colocou essa cueva lá , só pra criar rugas entre nós…

– Hacker, canalha? Pelo computador, foi é? Cínico!

– Isso mesmo. Foi você quem quis comprar aquela impressora 3D, falei que era besteira tua…

– Mentiroso! Mentiroso! Cara de pau!

– Deixa de besteira amor…confia em mim….afinal sou seu fiel con…conju..conjuju…conje…ah, sei lá ….sou teu marido fiel, isso é o que importa!…Vamos fazer uma segunda lua de mel lá nos States pra superar essa desconfiança…

-Pára de me enrolar!

– E vou agora mesmo na polícia apresentar uma queixa dessa faxineira. A gente demite ela e tudo volta ao normal.

[cai o pano]

Bem, esse diálogo poderia continuar por horas, igual aos depoimentos nas comissões do Congresso Nacional. Porém seria igualmente inútil. Como se sabe, batom na cueca não tem explicação. E quando está do lado de dentro da cueca, aí é que não tem desculpa mesmo. Como nesse caso da “vaza-jato”, em que os vazamentos vieram nitidamente do lado de dentro da operação.

Nessas situações, quando não há como explicar o inexplicável, a única saída é seguir o conselho do personagem de Nélson Rodrigues: negar, negar, negar. Na pior hipótese, deixa uma parte das pessoas em dúvida. A estas se somam os hipócritas, que não se escandalizam, pois são capazes de agir de maneira igual naturalmente, sem escrúpulos ou ética.

Assim já se obtém uma razoável base de apoio. Sem falar que há muita gente que, para manter as aparências, prefere acreditar nas mentiras. O conhecido falso moralismo que nos assola.

Alguns tinham a vã ilusão de que a lava-jato iria mudar o país. Não mudou, e tampouco a “vaza-jato” mudará. O buraco é muito mais embaixo. Mudar o caráter do brasileiro médio será obra de muitas gerações.

Cristianismo e Fascismo

Quase todos nós, cidadãos que habitam os países do ocidente, somos cristãos de alguma maneira. Até mesmo os ateus. Isso porque desde a infância somos formados com os valores do cristianismo, seja na família, na escola ou em qualquer outro espaço de interação social. Somos ensinados a cultivar o respeito ao próximo, a compaixão, a solidariedade e outros valores que, mais do que cristãos, são civilizatórios.

Com todo o meu respeito aos cristãos que orientam a sua prática baseada numa perspectiva humanista, como todo que se diz cristão deveria fazer, tenho que lhes dizer uma verdade incômoda: vocês são uma minoria no Brasil. Não tenho pesquisas científicas específicas para embasar tal afirmação Mas a manifestação da população quanto a temas polêmicos e, principalmente, o comportamento da população dita cristã nas últimas eleições, me permitem fazer essa ilação.

Se Cristo voltasse a Terra nos dias de hoje, mais precisamente no Brasil, provavelmente teria o mesmo destino. Se o povo fosse convocado para escolher entre Jesus e Eduardo Cunha, provavelmente o evangélico Cunha seria libertado e Cristo novamente crucificado.

O Brasil é o maior país cristão do mundo. Mas é também o maior país de cristãos hipócritas do mundo. Por aqui abundam “cristãos” intolerantes e sem compaixão, preconceituosos e juízes cruéis de seus semelhantes, propagadores de mensagens carregadas de ódio. Muitos dos cristãos brasileiros parecem mais seguidores de algum anti-cristo. Nas últimas eleições se destacaram em selfies fazendo “arminha com a mão”. Fotos tiradas até dentro de templos. Perdoai-os pai, eles continuam a não saber o que fazem”, talvez Cristo dissesse nos dias de hoje.

Ressalva importante: ser cristão não é declarar-se cristão, tampouco praticar uma religião cristã. O cristianismo se revela nas atitudes das pessoas. Por isso repito: a maioria dos cristãos brasileiros tem muito pouco de cristianismo na sua prática cotidiana.

O pior problema é que essa hipocrisia se reflete em todas as instâncias da vida social: na política, no esporte, na justiça. Na atuação dos deputados da bancada evangélica, nos atletas de Cristo, nos magistrados moralistas. Tudo isso se funde de uma forma lamentável.

Os exemplos dessa hipocrisia são vários e quase diários. Vemos os aplausos de muitos cristãos aos “traficantes de Cristo”, que destroem e expulsam os terreiros de suas comunidades. Outro exemplo recente e altamente repugnante envolve um juiz tido por alguns como um “herói do combate a corrupção”. Ele anda com a Bíblia embaixo do braço quase como um talibã anda com o seu Alcorão.

Em twitter recente., o juiz Marcelo Bretas demonstrou o seu fanatismo religioso, que seria facilmente encampado por inquisidores medievais. No meio do escândalo que revelou a promiscuidade entre os agentes da operação lava jato, publicou essa pérola:

A teoria da separação dos poderes foi mesmo idealizada por Montesquieu? Veja o que o profeta Isaías escrevera aprox. 2.500 anos antes dele (por volta de 750 AC): ‘Porque o Senhor é o nosso juiz; o Senhor é o nosso legislador; o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará.’ (Isaías 33:22) .”

Anteriormente, em palestra na Câmara de Comércio Brasil-EUA, em Nova York, comentou da seguinte forma o suicídio do ex-presidente peruano Alan Garcia:

“A gente tem feito um trabalho razoável, tanto que outros países da América Latina usam material da Lava Jato para investigar seus ex-presidentes, residentes, recentemente um deles cometeu suicídio, o que é lamentável. Acho que as pessoas têm que encarar a acusação e se defender, e não fugir de uma forma covarde de eventual erro”.

Ou seja, o cara que se afirma inocente, é submetido à execração pública antes de ser provada a sua culpa, não suporta a pressão psicológica da humilhação que lhe é imposta e se suicida. Para o juiz talibã de Jesus, é um covarde, Como deve também ser, no pensamento desse fundamentalista, o ex-reitor Cancellier, cuja acusação que lhe foi dirigida mostrou-se infundada, mas o levou ao suicídio.

Esse sujeito de toga se acha imbuído de uma missão divina. Logo, qualquer abuso é justificável. Foi assim que as cruzadas e a santa inquisição cometeram as maiores barbaridades. E em pleno século XXI ainda há gente assim.

Isso não é escolha política, é fascismo. É possível ser de direita, conservador e ter um mínimo de dignidade. Por exemplo, o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda,,que comandou uma campanha das mais asquerosas em oposição a Getúlio Vargas. Na noite do suicídio do presidente, Lacerda tomava champanhe com aliados, esperando a chegada da carta de renùncia que não veio. Quando recebeu a notícia do suicídio do então presidente, assim se pronunciou em uma entrevista:

Quando soubemos que o Getúlio tinha renunciado fomos para a casa de José Nabuco, que estava repleta de gente, inclusive Afonso Arinos, líder da UDN. Abriram champanhe, começamos a comemorar. Até que, já de manhã, alguém telefonou anunciando o suicídio de Vargas. É evidente que houve aquele momento assim de não sei bem como definir o sentimento, em todo caso, não era um sentimento de alegria; era um sentimento de pena do homem, da tragédia humana, da tragédia pessoal do homem, de imaginar a agonia  em que um homem deve estar para chegar a dar um tiro no coração. Isso marca de modo curioso a diferença entre o caráter brasileiro e o caráter de outros povos.

Mesmo o mail vil dos políticos de direita foi capaz de se posicionar com um pingo de dignidade, de compaixão, de respeito ao sofrimento alheio. O que dizer desse juiz narcisista, fetichista das armas e marombado?

A comparação entre a postura do Carlos Lacerda com a do atual juiz distingue muito bem o que é uma opção política de direita e o que é fascismo.

Lamentavelmente, o cristianismo hipócrita do Brasil anda de mãos dadas com o fascismo. E por isso hoje coloca em risco nosso frágil Estado Democrático de Direito.

E a farsa se repete enquanto história.

Criamos nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não é necessário que seja uma realidade. O que dá realidade é o fato de que estimula, dá fé e dá valor.” Benito Mussolini (discurso proferido em Napoli, 22 de outubro de 1922, às vésperas da “Marcha sobre Roma”).

Noi abbiamo creato il nostro mito. Il mito è una fede, è una passione. Non è necessario che sia realtà. È una realtà nel fatto che è un pungolo, che è una speranza, che è una fede, che è coraggio.(Opera Omnia, XVIII, p.160)

O cientista político David Runciman, em livro lançado no ano passado no Brasil, diz que não devemos buscar nas experiências fascistas do século XX respostas que nos ajudem a entender o retrocesso democrático que vemos pelo mundo na atualidade.

Bem, sou daqueles que discordam do prestigiado acadêmico da universidade de Cambridge, ainda que parcialmente. Claro que os diferentes momentos históricos devem ser contextualizados. Mas muita coisa se repete sim. E a paródia que faço da frase de Marx no título desta postagem é para provocar essa reflexão.E exemplifico com a epígrafe, uma citação de Mussolini pouco lembrada.

O fascismo renasceu no mundo. Claro que os neofascistas não reivindicam essa herança histórica. Se eles são uma redenção, não podem se identificar com a barbárie. Daí as elaborações intelectuais bizarras, tal como atribuir o rótulo de “esquerda” ao nazismo.

Não vou apontar mais semelhanças, pois já o fiz em postagem recente (“A preparação para a noite dos cristais tupiniquim”). Também não vou comparar Mussolini a Bolsonaro. Apesar do quadro de perturbação mental de ambos, Mussolini não era um boçal. Pelo contrário, era inteligente, culto e bem articulado. Sua obra completa, entre textos e discursos, soma mais de trinta volumes.

Bolsonaro é um fascista intuitivo, um boçal, que age na mesma lógica dos demais fascismos. O objetivo é ocupar o poder totalmente, golpear o Estado Democrático e eliminar dissidências. O que é assustador é o percentual da população que não se escandaliza com isso e, pior, apoia essa insanidade. Não menos grave é o fato de que há os democratas que minimizam os riscos que podem advir desse alucinado. “Nossas instituições são sólidas”, dizem. O mesmo erro do passado, em vários lugares e períodos da história.

O fascista é um determinado. É uma profissão de fé. Não costuma recuar nem desistir de seus objetivos. Só é retirado do poder à força, pois recusa a democracia. Antes das eleições, anuncia que se for derrotado será por uma fraude. Uma vez no poder, não vai deixá-lo sem oferecer resistência.

Quanto ao fracasso econômico que se anuncia, tentarão creditá-lo na conta daqueles que “não o deixam governar”. Para convencer a população disso, mentiras serão despejadas aos roldões pelos seus seguidores. A postura covarde – ou mesmo cúmplice – dos meios de comunicação e do judiciário os estimula a essas práticas.

O fascismo propaga o mito de que é possível uma sociedade idealizada, pura e homogênea e sem dissensos, onde minorias não tem vez (“tem que se curvar a maioria”). E que, para chegar a esse ideal, não é possível seguir os princípios do Estado Democrático de Direito. Por isso Bolsonaro chegou a propor a legalização das milícias. Pela mesma razão, o ex-juiz Moro e o Procurador Deltan rasgaram a Constituição Federal, o Código Penal e o código de ética de suas profissões na operação Lava-jato. Nem por isso foram devidamente repreendidos pela mídia e pelo STF. Assim avançam.

Para o fascista, só é possível derrotar o crime de forma criminosa. Crimes praticados por “cidadãos de bem” não são crimes, na visão deles. Não se julgam criminosos. A desfaçatez de Moro ao ser flagrado pelo jornalismo do Intercept é reveladora (e assustadora).

Por tudo afirmo: Ainda teremos tempos bem difíceis pela frente. De crise em crise, o governo vai ficando cada vez mais acuado, e seus seguidores cada vez mais ferozes. Os fascistas não vão recuar sem provocar um confronto em que acreditam sair vitoriosos, a missão divina que julgam estar destinados a realizar.

Moro já cumpriu o seu papel e poderia ser facilmente descartado e minimizar a crise que só se inicia. Se não fosse um porém: a queda de Moro pode significar a liberdade de Lula. Coisa que comandantes militares e fascistas do governo (não será pleonasmo?) não aceitam. Nunca a vida de Lula esteve tanto em risco.

A defesa de Moro conta com a mesma complacência e cumplicidade que a Polícia Federal, a grande imprensa e o judiciário tiveram no “caso Lula”. Esses agentes públicos também tiveram sucesso em abafar o caso Queiroz e esfriar a busca pelos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco.

Em jogo está a manutenção ou não do Estado Democrático de Direito. E o futuro do Brasil nos próximos cinquenta anos.

O inominável mandante do assassinato de Marielle Franco

Alerta: este texto pode conter ironias

Começo esta postagem fazendo uma afirmação que pode soar um tanto exagerada para alguns: O futuro da democracia no Brasil depende da completa elucidação do caso Marielle Franco e Anderson Gomes. Porque a execução da combativa vereadora trouxe a luz o câncer que está tomando conta do Estado brasileiro, as milícias supramilitares. Adoto outro prefixo porque chama-las de paramilitares seria um erro, pois elas não são paralelas às instituições militares e policiais. São a sua extensão superior, uma organização criminosa influente no comando do aparato repressor do Estado.

O sumiço do Queiroz, motorista que operava as atividades ilícitas encontradas no seio do clã Bolsonaro, de evidentes ligações com as milícias, conta com uma inexplicável tolerância dos meios de comunicação. E, muito mais grave, uma complacência de boa parte da polícia e do judiciário. Isso nos leva a uma ilação assustadora: será que a milícia está fazendo uso da tática “plata o plomo” do Pablo Escobar, que no Brasil teria a variante “calate o plomo”?

As milícias são hoje a maior ameaça à nossa claudicante democracia. Muito mais grave que os escandalosos atentados ao Estado de Direito praticados pelos nossos agentes públicos lavajateiros.

Antes da divulgação pelo Intercept Brasil da promiscuidade existente no seio da operação Lava-jato, Sérgio Moro “vazou” para a imprensa que se preparava para fazer o anúncio do responsável pela ordem de executar a vereadora Marielle Franco, que também vitimou o motorista Anderson Gomes.

Porém, a essa altura, o espetáculo midiático tão ao gosto de Moro, se ele permanecer no cargo, já não terá a menor credibilidade. Se feito, será mais um factoide para desviar as atenções. Teremos mais um “laranja” para o laranjal presidencial.

Não que Moro não tenha os meios e recursos para descobrir o verdadeiro responsável. Para chegar aos mandantes, bastaria seguir a regra básica da investigação nesses casos: o famoso “follow the money” (siga o dinheiro). Com o COAF nas mãos, não seria uma tarefa das mais difíceis para o Ministro da Justiça que, aliás, quis ter o órgão sob a sua alçada logo após vazarem os dados comprometedores da família do presidente. Pura coincidência, claro. O objetivo de Moro é chegar aos políticos corruptos, doa a quem doer. O resto é intriga da oposição, que insinuou que Moro estava mais preocupado em ocultar as relações da família presidencial com milicianos (porque amizade com bandidos não faz de ninguém um criminoso, não é?) do que perseguir desafetos políticos corruptos.

Moro perdeu o tal órgão na Câmara dos Deputados. Tudo porque no passado o então juiz vazou para a imprensa informações obtidas de forma criminosa, grampeando ilegalmente até escritórios de advocacia. Como a mais alta corte do nosso pais não teve coragem de puni-lo, os deputados temeram pelo que ele poderia fazer agora com o poder de ter o COAF nas mãos.

Em ato quase contínuo, a ministra Damares exigiu que os dados dos que recebem recursos federais pelo programa de proteção às testemunhas lhe fossem entregues. No caso, muita gente que delatou milicianos. Assim talvez tenham acesso a testemunhos vitais para elucidar o caso. O objetivo dela é ver se os recursos são realmente utilizados como deveriam, claro (só a oposição maledicente duvidaria disso…). Se esses dados guardados a sete chaves vazarem e ocasionarem alguma “queima de arquivo” pelos milicianos certamente será apenas por mais uma daquelas infelizes coincidências que ligam a família do presidente às milícias. Só mesmo a oposição esquerdista consegue ver nessas coincidências uma família de cidadãos do bem envolvida com criminosos até a alma. E uma ministra tão temente a Deus jamais compactuaria com crimes, não é mesmo?

Seja como for, há fortes razões para deduzir que dificilmente o nome a ser anunciado será o do verdadeiro mandante.

Quem encomendou o assassinato é um inominável, embora nos bastidores já se saiba quem ele é. Algumas autoridades já deixaram isso bem claro. O ex-Ministro da Justiça e o ex-comandante da intervenção militar no Rio de Janeiro afirmaram que por trás do crime há “políticos poderosos” e “famílias influentes”. O tom pode parecer evasivo, pois a revelação vai até o limite que a prudência recomenda quando milicianos estão envolvidos. Não se deve provocar quem tem acesso facilitado a uma rede sofisticada de assassinos profissionais.

O mandante do crime, o inominável, é obviamente um boçal. Mas um boçal poderoso, que consegue mobilizar agentes públicos para erguerem uma sólida blindagem que visa sabotar as investigações e assim lhe garantir a impunidade.

Seu maior erro foi menosprezar a repercussão e indignação nacional e internacional que o assassinato da Marielle causou. Como boçal que é, não imaginava que o assassinato de uma mulher negra, lésbica e de esquerda poderia causar tanto alvoroço. Um raciocínio que até tem sua lógica, pois a tal “classe média formadora de opinião” é notoriamente racista, misógina e homofóbica. São aqueles que, cinicamente, dizem “- todo dia bandido mata gente inocente, o que o assassinato de Marielle tem demais?”. Como se fosse trivial um crime politico planejado em detalhes, encomendado, caríssimo e com a cobertura de agentes públicos (que desligaram as câmeras da rua no local e hora da execução).

O inominável menosprezou o fato de que, apesar dessa classe média deplorável que temos, há uma expressiva militância enraizada na sociedade brasileira comprometida com a defesa dos direitos humanos, ainda que minoritária. São os tais “ativistas” que o atual presidente gostaria de ver presos, exilados ou mortos. Menosprezar esse fato talvez tenha impedido o mandante de contratar um reles pistoleiro de aluguel, que poderia ser eliminado logo a seguir, nas tradicionais queimas de arquivo que os milicianos são useiros e vezeiros de praticar e que são a garantia de um processo arquivado sem solução.

O inominável boçal errou feio. Queria dar um recado político para os seus adversários políticos. Achou que o fato da maioria compartilhar de seus valores, que as relações promíscuas com agentes corruptos do aparelho policial de estado bastariam para abafar o caso e fazer o crime cair no esquecimento. Por isso contratou os melhores assassinos do mercado, capaz de cometer crimes de altíssima sofisticação, tal como os que acontecem nos filmes policiais de Hollywood (filmes que, aliás, o Ministro da Justiça parece gostar muito).

A prisão dos executores do assassinato foi um duro golpe, mas ainda no limite da prudência. Nesse dia, conhecidos políticos que são twitteiros compulsivos, que possuem relações quase carnais com reconhecidos milicianos, passaram o dia quase totalmente silenciosos. Mas isso deve ter sido mais simples uma coincidência.

As procuradoras e o delegado que conduziram as investigações abusaram de sofismas, ao considerar hipóteses nada plausíveis para o crime. Um recado subliminar, algo como “- os executores estão aí, fizemos a nossa parte, agora os políticos que resolvam qual será o próximo passo”. Como diz o dito popular, possivelmente endossado pelo “guru anal-obcecado” da moda, “que tem c* tem medo”. Até porque o inimigo pode ser o coleguinha policial ao lado.

A investigação chega então a um impasse. Todos sabem que assassinos profissionais “top de linha” jamais entregam os mandantes. Eles bem sabem das consequências que isso pode ter para eles e para as suas famílias. Não se brinca com o código de ética desses criminosos, mesmo sendo uma cosanostra tupiniquim. Quando o assunto é barbárie o Brasil está no primeiro mundo.

Tanto que o governador “só na cabecinha” afastou o delegado investigado imediatamente. Seja para preservá-lo ou para atender a “recomendações de terceiros”, o fato contribui para quebrar a continuidade das investigações.

Os executores foram transferidos para presídios de segurança máxima. A eliminação deles a essa altura poderia ter efeitos contrários ao que o mandante inominável deseja: abafar o caso.

O tempo corre. Talvez a dificuldade nesse momento seja encontrar um laranja que assuma o crime e que soe factível. As operações deflagradas contras as milícias, a pretexto de combatê-las, visam muito mais obrigá-la a entregar um peixe-grande. Não pode ser um zé-ninguém. Alguma figura poderosa do mundo miliciano terá que pagar o pato. Resta convencê-lo disso.

É dura a missão de um Ministro da Justiça nesse Brasil em que vivemos.

Epicurismo para tempos sombrios (ou, a falácia do “Olavismo”).

Os últimos anos da antiga Rússia czarista foram marcados por um personagem intrigante: Gregori Rasputin. Foi um controverso monge que tinha forte ascendência sobre o Czar e a família imperial russa. Eles o viam como um misto de santo, profeta e curandeiro, após Rasputin salvar a vida de um filho do czar que era hemofílico. Sua forte influência nas erráticas decisões políticas do Czar despertou a ira da nobreza, que o assassinou em 1916. No ano seguinte o czarismo seria derrubado pela revolução bolchevique.

Curiosamente, a família que governa o Brasil na atualidade também tem um Rasputin pra chamar de seu. Influenciou a nomeação para pelo menos dois ministérios relevantes. Indicações catastróficas, a bem da verdade, dignas de um Rasputin. Portanto, é importante conhecer o pensamento daquele que alguns chamam de “guru da Virgínia”, o autodenominado filósofo Olavo de Carvalho. Principalmente a sua obra seminal, o livro “O Jardim das Aflições”, escrito numa única noite, conforme relato do próprio autor.

Logo nas primeiras páginas se percebe que a obra não foi fruto de uma iluminação divina ou transe intelectual. Qualquer residente em medicina psiquiátrica não terá dificuldade em identificar ali um surto paranoico, aparentemente deflagrado por uma palestra do já falecido professor de filosofia José Américo Motta Pessanha sobre o filosofo grego Epicuro, denominada “As Delícias do Jardim”. Ambos os textos – livro e ensaio oriundo da palestra – estão disponíveis na internet.

Pelo histórico pessoal do autor, que inclui outros surtos psiquiátricos que demandaram ao menos uma internação, o conteúdo não chega a surpreender. Mas esse fato não deve ser usado para depreciar a obra do Rasputin tupiniquim. Afinal, vários filósofos importantes também sofreram com distúrbios psiquiátricos, sendo Nietzsche, Foucault e Althusser os mais citados. Isso supondo que Olavo mereça o status de “filósofo”, algo exagerado para este folclórico personagem, um estudioso autodidata cujo reconhecimento no ambiente intelectual é praticamente nulo.

Os títulos – do artigo e do livro – são significativos. Pra quem não sabe, o filósofo grego criou a sua escola filosófica num local que era um misto de horta e pomar, que ficou conhecido como “o Jardim” (Kepos, em grego). Imaginava que dali seus discípulos obteriam o alimento para o corpo (o que cultivavam) e para a alma (a sabedoria filosófica).

Para o surtado astrólogo, isso quase equivale à uma escola de um assentamento do MST, onde Epicuro “doutrinaria” os seus discípulos.

Da vasta obra de Epicuro – historiadores da antiguidade citam centenas – pouca coisa sobreviveu ao tempo. Só restaram alguns aforismos, cartas e relatos de discípulos apaixonados. Um material muito propício para a construção dos superficiais manuais de autoajuda e compilados de citações “lacradoras”. Uma injustiça para com o longínquo filósofo.

O breve e bem escrito ensaio de Motta Pessanha, mesmo sem ter essa intenção, contribui para disseminar a ideia de um mestre a ser seguido e venerado. E esse parece ser um dos motivos da fúria do guru da Virgínia: o texto de Pessanha é prazeroso de se ler, sedutor mesmo. O que leva o pseudofilósofo a acusar o seu autor de usar intencionalmente técnicas de programação neurolinguística. Parte do surto psíquico, obviamente.

Não deixa de ser engraçado que o Rasputin dos trópicos (ainda que resida na Virginia) tenha se tornado para os governantes atuais exatamente um mestre do tipo que ele mesmo repudia. Além do clã no poder, o guru é seguido incondicionalmente por uma manada de devotos, nítidos indigentes intelectuais, algo que ele mesmo já reconheceu em um de seus twitters.

Pra aumentar a ira do guru, Pessanha era um professor assumidamente marxista, o que o torna execrável aos seus olhos e o obriga a não deixar pedra sobre pedra em sua crítica. Afinal, em sua lógica paranoica, nada que venha de um “esquerdista” pode ser aproveitado. Pra piorar as coisas, o primeiro trabalho acadêmico do jovem Marx, ora vejam só, foi justamente sobre….Epicuro (Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro). O filósofo grego, coitado, se torna assim um protomarxista da antiguidade aos olhos de uma mente perturbada.

Assim, na sua crítica delirante ao filósofo grego, o excêntrico guru mistura alhos e bugalhos. Exibindo uma erudição duvidosa, sem citar fontes e abusando das fofocas da história grega pinçadas aqui e acolá, se põe a reduzir Epicuro a pó, a um filósofo menor da antiguidade. Mas nem assim consegue ser original. Vários estudiosos emitiram opinião semelhante. Mas são conclusões de autores baseados em estudos filosóficos aprofundados de textos originais em grego antigo – idioma que o guru não domina. Pra quem se interessar em conhecer as críticas às fragilidades do pensamento de Epicuro há uma bibliografia vasta. Só que de qualidade.

Epicuro foi muito atacado ao longo da história, principalmente pela igreja católica, que o colocou no index de autores proibidos. Passou à história quase como um libertino, um hedonista defensor dos prazeres da carne.

Nada mais enganoso. O poeta Fernando Pessoa e, mais recentemente o filósofo francês, esse sim hedonista, Michel Onfray, perceberam que o epicurismo pouco tinha de hedonismo, sendo mais uma forma amena de estoicismo, corrente filosófica que lhe era rival.

Dai voltamos ao título deste artigo. O que pode nos ser útil nos tempos atuais da antiga filosofia epicurista? Todo cuidado é pouco ao se apropriar de ideias surgidas em outros contextos históricos.

Epicuro viveu numa Grécia sob dominação estrangeira (macedônica). Não havia mais liberdade para o exercício da cidadania tal qual na antiga polis. Então, como se diz hoje, Epicuro se fechou em sua “bolha”, no seu jardim-escola filosófica com os seus discípulos. Para usar outra imagem atual, dentro de seu jardim “ninguém soltava a mão de ninguém”. Era um espaço de compartilhamento de sabedoria, estruturada numa rede de afetos, que ajudava a aplacar as angústias causadas pela realidade do mundo exterior que não era possível de ser contestada naquele tempo. Ao menos sem que se corresse o risco de sofrer graves consequências pessoais, tais como prisão, exílio ou morte.

Porém Epicuro, mesmo optando por abster-se do confronto politico na polis, promoveu um ato bem transgressor à sua época, ao abrir a sua escola a não cidadãos: estrangeiros, mulheres e escravos. Relatos da antiguidade citam a presença de prostitutas e homossexuais nesse jardim, o que contribuiu para a fama de libertinagem do epicurismo difundida pelos católicos.

Para Epicuro, todos tinham o direito de ter acesso à sabedoria.

Nesse sentido, é interessante notar que a bandeira que mais tem levado pessoas às ruas nesse momento seja exatamente o direito à educação. Talvez aí esteja um campo de batalha crucial para o enfrentamento do neofascismo que nos assola. A nossa resistência deve ter uma forte dimensão cultural. O fascismo alimenta-se da ignorância e da irracionalidade.

Portanto, fechar-se num jardim, numa “bolha”, não é uma opção recomendável do ponto de vista politico, ainda que válida do ponto de vista existencial. O abatimento, o desânimo e a depressão estão afetando muita gente, principalmente as emocionalmente mais sensíveis e alvos de preconceito. É importante ter a nossa rede de afetos, nosso espaço de sociabilidade, nosso porto seguro, nosso “jardim”. Porém é preciso ir além. É necessário disputar as ruas e todos os espaços de interação social. Antes que isso se torne perigoso demais, ou mesmo impossível.

Recentemente foi relançado um texto teatral belíssimo: “Rasga Coração”, do Oduvaldo Viana Filho. Nessa edição há uma série de falas não incluídas no texto final. Uma delas, em que o pai, Manguary Pistolão, velho comuna, replica o seu filho hippie que prefere viver numa comunidade alternativa:

Não quero que você seja um rebelde sem rebelião, um rebelde porque não há rebelião. Você não pode se justifica pensando – eu fiz, por que os outros não fazem? E por uma medalha no peito e sair por aí fascinado consigo mesmo. Os outros não fazem rebelião, exatamente porque há lugar para poucos rebeldes sem rebelião.Se você quer tomar esse lugar de prícipe mal entendido, tome. Mas saiba que você escolheu sentar no trono. Você escolheu as jóias da coroa, você não escolheu as estrebarias, onde estão todos, inclusive seu pai, escovando os cavalos das fúrias.”

O velho comuna acertou na mosca.

Impeachment? Quem pariu Mateus que o embale…

Reza a lenda, que o ditado popular acima tem origem bíblica. Mateus, o discípulo de Jesus, seria um cobrador de impostos execrado pela população. Quando Cristo o acolheu entre seus seguidores, os fariseus protestaram. Um indivíduo ruim desses, só mesmo a própria mãe poderia lhe dar guarida.

Nesse momento do nosso país, a mãe que pariu o Mateus-Bolsonaro está enrascada.  A elite econômica e politica brasileira não precisou mais do que quatro meses para se dar conta de que pariu um monstrengo que não tem como controlar. Por isso já vai se firmando um consenso de que dar sustentação ao Bolsonaro foi uma burrada sem tamanho.  O estrago nacional e internacional é cada vez mais difícil de dimensionar.  E só vai piorar.

É certo que ele foi funcional para a prioridade número um de nossas elites de DNA escravocrata: impedir a volta de um governo que promova a mobilidade social no Brasil (que no nosso país significa ser de extrema esquerda, quase terrorista). Não se iludam que nossa elite esteja arrependida; ela só está frustrada, preocupada com o risco que se projeta sobre o seu patrimônio. Só por isso é que vão tomar alguma atitude.

Os donos do poder debatem agora sobre o que fazer com o rebento indigesto que pariram.  Já estudam como retirá-lo da presidência.  Mas a prioridade continua a mesma; impedir ganhos políticos e futuramente eleitorais para os que defendem bandeiras de justiça social.

Posto isso, cogitam alternativas.  Não faltam meios para desconstruir o “mito”. Além de um governo bizarro e incompetente, já cometeu meia dúzia de crimes de responsabilidade em tão pouco tempo. E, mais grave, vai se desvelando o envolvimento com as atividades criminosas das milícias, até agora cuidadosamente abafadas.  Não é assunto novo, poderia tê-lo inviabilizado já antes das eleições, se não fosse o risco de triunfo de um “extremista de esquerda”, na visão de nossa elite perversa.

A primeira saída, que alguns tentam construir nesse momento, aparentemente já está condenada ao fracasso: convencê-lo a se tornar uma “rainha da Inglaterra” numa espécie de “parlamentarismo branco”. Isso, em tese, viabilizaria a aprovação da pauta econômica do capital financeiro. Mas é algo que já se antecipa como inviável. A incontinência verbal dele e de seu clã é incontrolável, fonte permanente de crises políticas. Ademais, o ministério bizarro que ele montou trava qualquer possibilidade de políticas públicas bem sucedidas. E um governo fracassado é a senha para o retorno dos “indesejáveis esquerdistas”.

A segunda hipótese seria forçá-lo a renunciar.  Não é algo que combine com o perfil do presidente, um boçal sem noção.  Talvez pensem ser possível chantageá-lo  negociando a renúncia com uma imunidade para os seus familiares que, pelo “laranjal” que está sendo apurado, poderiam até ir pra cadeia. Tal como teriam feito com o Eduardo Cunha que, em troca da imunidade para esposa e filha, teria aceitado a prisão e um prudente voto de silencio.  Parece que o presidente já percebeu que isso está no ar, ao chamar a briga para si recentemente, pedindo pra deixarem seus filhos em paz.  Se essa hipótese for a escolhida, há que se avaliar os riscos.  Um animal selvagem acuado poder ser perigoso.

A terceira hipótese seria a mais desgastante: um novo e longo processo de impeachment.  Seria reconhecer a falência de nosso sistema político, a falácia da democracia brasileira. Sem falar no tempo dispendido para fazer os acertos “com o Supremo e com tudo”. E isso em meio à enxurrada de fake news nas redes sociais e o ladrar histérico da matilha que acompanha o clã presidencial. O tempo ainda potencializa mais um risco para as elites: a reabilitação da “esquerda”  que ousa querer tirar o Brasil do mapa da fome e inviabilizar o emprego doméstico no Brasil.

Sempre é bom falar que aqui são descartadas as hipóteses conspiratórias (tais como as que surgiram com os acidentes com Eduardo Campos e Teori Zavaski). Além de pouco plausível, seria desastroso para o país ter um boçal transformado num mártir. Outras hipóteses cogitadas também são altamente improváveis: a cassação da chapa eleitoral, a partir de uma CPI das fake news ou mesmo uma interdição por razões de insanidade.

Por fim, uma saída que vai se delineando para as nossas elites: o parlamentarismo. A experiência de desgoverno de Bolsonaro está fazendo com que os parlamentares tomem gosto pela coisa. Nosso sistema partidário fragmentado, as constantes crises de governabilidade do presidencialismo de coalizão e as seguidas frustrações do eleitorado serão a justificativa. Além do que, em tese, torna mais longínquo uma nova hegemonia da esquerda. Mas será difícil crer no sucesso de uma reforma do galinheiro que será feita pelos lobos.

Enfim, não há saída fácil. Mesmo isolado, tudo indica que o clã familiar e sua horda de cães raivosos irão resistir ferozmente. Vão radicalizar o discurso anti-establishment e apelar para um golpe.

Aí chegamos a uma hipótese mais remota, mas que não pode ser descartada. Será ele capaz de mobilizar sua base de apoio além da sua leal trupe de fanáticos? Aí nos preocupamos com os policiais, militares de baixa patente e milicianos.  Tudo depende do quanto ele seria capaz de articulá-los para promover a insubordinação.  Nesse caso, mais uma vexame nos espera: a tutela militar para colocar ordem na casa, restaurando a disciplina da tropa e prendendo os criminosos das milícias. Mas talvez não antes dos fascistas promoverem uma sangrenta barbárie.

A grande dificuldade para uma saída democrática é o pouco apreço que nossas elites de DNA escravocrata têm pela democracia. No século XIX, de acordo com o clássico ensaio de Roberto Schwarz, o liberalismo no Brasil era uma “ideia fora de lugar”. Pois que chegamos ao século XXI e o liberalismo se mostra como uma ideia sem lugar no Brasil. A democracia que se almeja aqui é a de fachada, uma vez que o mundo desenvolvido não tolera mais governos autoritários (com exceção das trilionárias dinastias árabes, fornecedoras indispensáveis de petróleo). Dai a omissão cúmplice das nossas elites ao avanço do fascismo.

Segue o jogo. O vice-presidente já está com o terno pronto e engomado para a posse. Mas a mãe de Mateus, em conflito com o rebento que pariu, ainda não sabe bem o que fazer. Por hora, a elite econômica, seus políticos e a mídia continuarão a agir como bombeiros, na tentativa de salvar a pauta legislativa do capital financeiro e dos ruralistas. E nossas instituições, particularmente o STF, já se mostraram claramente covardes diante das agressões à nossa Constituição. Até os militares engoliram seco as humilhações do guru do clã Bolsonaro.

O fascismo bolsonarista não dará trégua. O projeto dele é de fazer no Brasil o que faz Orban na Hungria. Porém está fadado ao fracasso, e por uma simples razão: não há horizonte de recuperação econômica. O fundamentalismo neoliberal de Paulo Guedes não tem a menor chance de dar certo, ainda mais com as nuvens cinzentas que se avizinham no cenário internacional. A cada fracasso, o presidente tentará jogar a culpa na velha política que não o deixaria governar, enquanto ganha tempo para armar as suas milícias.

Por enquanto, a mãe de Mateus está “cozinhando o galo”, a carne dura que é difícil de ser deglutida. Ela ainda não sabe ao certo se vai servi-la na refeição ou se vai pedir uma pizza. Assim, vai empurrando a situação com a barriga, adiando um confronto inevitável. Tenta ganhar tempo para equacionar uma saída menos desgastante e sem maiores riscos. Embora o General Mourão seja palatável para muitos, e esteja se esforçando para construir essa imagem (até com a consultoria de sociólogos) ainda há dúvidas se ele é a melhor alternativa.

A queda do governo virá pela motivação de sempre: o desandar da economia jogando o país numa recessão profunda.

Resta saber ao custo de quantas vidas.

A preparação para a “noite dos cristais” tupiniquim

Não faltam razões para se criticar o atual presidente. Mas de uma coisa não se pode acusá-lo. De não ser transparente. Ele fala o que pensa sem rodeios. Pior: ele fará o que pensa, se o deixarem. Mas, como muitas vezes tratam-se de aberrações e insanidades, as pessoas não o levam muito a sério. Atribuem a ele uma limitação linguístico-cognitiva para expressar o que pensa e planeja fazer. Dessa forma, as sandices que profere são interpretadas como metáforas primitivas, figuras toscas de linguagem que não deveriam despertar maiores preocupações.

Mas quem pensa assim está enganado. Ele fala a verdade quando diz querer eliminar adversários, colocando-os na cadeia, no exílio ou matando-os. E se puder, ou se o permitirem, será capaz de fechar o Congresso e mandar um cabo e um soldado pra fazer o mesmo com o STF.

Chamá-lo de fascista não o perturba. Ele é um boçal e, nessa condição, conceitos intelectuais nada significam. Mas ele age e pensa como um fascista, ainda que seja um tosco. Idem para a matilha que o segue incondicionalmente

Que ninguém se iluda: o discurso fascista é sedutor. Mesmo que tenha um alcance limitado, o fascismo usa o fanatismo de seus seguidores para se impor. A história está aí para provar isso. Não importa a condição social ou a escolaridade do cidadão. Entre os nazistas havia um alto percentual de acadêmicos, mestres e doutores, intelectuais da área jurídica e econômica. Sem falar nos médicos e enfermeiros que se engajaram nas bárbaras experiências dos campos de concentração e dos engenheiros qualificados que projetaram as câmaras de gás para o extermínio em massa, como observa um texto apócrifo que circula nas redes.

O discurso fascista dialoga com instintos mais primitivos do ser humano. Por essa razão, as lideranças fascistas não costumam se caracterizar por qualquer brilhantismo intelectual, muito pelo contrário. O sucesso de seu êxito é ter um imenso senso de oportunidade, de saber quando e como agir de forma determinada para a realização de seus propósitos. E isso não deve ser subestimado.

As experiências fascistas possuem algumas características comuns, independente de onde e quando ocorrem. Umberto Eco chamou de Ur-fascismo, ou “fascismo eterno”. Mais recentemente, Jason Stanley descreveu o modus operandi do fascismo. Não há novidade no roteiro desse filme, cujo final trágico é mais do que conhecido.

Além das características comuns, existem algumas coincidências anedóticas. Por exemplo, Hitler também tinha seu guru-filosofo. Chamava-se Alfred Rosenberg e escreveu inúmeros livros. Rosenberg escrevia de forma prolixa e confusa. Defendia a existência de uma conspiração internacional para destruir o estado alemão pelas por forças judaico-bolchevistas que, por conta disso, se constituíam no inimigo a ser exterminado. Suas ideias paranoicas foram uma das principais fontes da doutrina nazista.

Além desse “personal- guru”, Hitler também tinha o seu “jurista de estimação”:Carl Schmitt. Ao contrário dos seus pares tupiniquins da atualidade, pseudo-iluministas e punitivistas, Schmitt possuía uma sólida cultura jurídica. Sua doutrina defendia o decisionismo jurídico, que legitimava um tipo de ativismo político do judiciário que subordina as normas jurídicas à decisão do juiz. Isso acabou por se mostrar muito funcional para os nazistas atacarem o Estado Democrático de Direito. Não por outro motivo Carl Schmitt foi homenageado como jurista emérito do 3º Reich e recebeu elogios rasgados do Fuher.

“Que teríamos feito sem os juristas alemães? Desde 1923, percorri, na legalidade e lealmente, a longa via que leva ao poder. Coberto juridicamente, eleito de forma democrática. Mas o futuro teria de se realizar. Foi o incorruptível jurista germânico, o honesto, o cheio de consciência, o escrupuloso universitário e cidadão, que acabou o trabalho de me legalizar, fazendo a triagem de minhas ideias. Ele criou para mim uma lei segundo o meu gosto e a ela me ative. Suas leis fundaram minhas ações no Direito” (trecho do discurso de Adolph Hitler saudando o jurista Carl Schmitt, 13/07/1934).

Os fascistas se aproveitam da crise econômica e da descrença com a corrompida politica tradicional para chegar ao poder pela via democrática. Para isso recebem o apoio do empresariado e, com apelos ao moralismo mais simplório, conquistam os setores conservadores da Igreja. Uma vez no poder, desprezam as instituições democráticas e se mobilizam para conquistar o poder absoluto. Contam com o uso de uma poderosa máquina de propaganda, que segue os ensinamentos de Joseph Goebbels: repetir mentiras à exaustão, até que todos as percebam como verdades. As redes sociais de fake news são apenas a versão contemporânea dessa estratégia fascista, que Steve Bannon soube tão bem adaptar.

Tudo isso que citamos fornece a base para o assalto definitivo ao poder, que é a fase que agora se inicia. Primeiramente, arregimentar as tropas fiéis. Os aliados eleitorais já não importam mais, pois já se prestaram ao que interessava a eles. Só terão assento no poder os que devotarem fidelidade absoluta. Os que resistirem, terão futuramente a sua “noite das facas longas”. O alinhamento total se torna cada vez mais uma exigência para ocupar os postos de governo.

A fase seguinte é a que mais preocupa: a organização de milícias armadas. Esse é o objeto real da ampla liberação de armamentos pelos recentes decretos, claramente inconstitucionais, mas que apostam na covardia, omissão ou mesmo na cumplicidade do nosso tribunal constitucional, sem o que nenhum fascismo triunfa.

As milícias armadas são a base para o assalto ao poder pelos fascistas. Os Camicie Nere (camisas negras) de Mussolini e as SA e SS de Hitler foram fundamentais para a tomada total do poder politico. Esse modelo foi usado por vários outros lideres fascistas pelo mundo, bem sucedidos ou não. Foram os “camisas azuis” da Falange Espanhola e do Parti Fransiste francês, entre outros. No Brasil tivemos os “camisas verdes”, do integralista Plínio Salgado. Jocosamente apelidados na época de “galinhas verdes”, hoje são os “patos amarelos” do bolsonarismo.

Tropas armadas e organizadas, o passo seguinte é o golpe contra a democracia, ou ao que restar dela. Só precisam de um pretexto, que pode ser real ou fabricado. Tipo um “incêndio do Reichstag“ (o parlamento alemão). No Brasil isso já foi tentado pelo militares ao menos duas vezes: quando quiseram explodir o gasômetro no Rio de Janeiro (impedido pela insubordinação do Capitão Sérgio Macaco) e na bomba do Riocentro (que explodiu no colo do militar fascista). Foi esse vergonhoso caráter bombástico dos militares brasileiros que inspirou o jovem tenente Bolsonaro a planejar a explosão de bombas no quartel, em busca de aumento dos soldos.

Dado o golpe, seguir-se-á a “noite dos cristais”: a perseguição e eliminação dos “inimigos”. Aí se incluem os trinta mil que o presidente gostaria de ver mortos, os “ativistas” que ele quer ver banidos do país.

Aos que acham que tudo isso é exagero ou delírio paranoico deste simplório blogueiro, sugiro que leiam atentamente as diversas matérias que tem sido publicadas sobre as milícias cariocas, as mesmas com as quais a família do presidente mantém relações quase carnais. Após essas leituras, reflitam sobre esse clássico ensinamento histórico:

Os fascistas só puderam realizar suas atividades porque dezenas de milhares de funcionários do Estado, em particular dos organismos de segurança pública (delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros) e da Magistratura, tornaram-se seus cúmplices morais e materiais. Estes funcionários sabem que a manutenção de sua impunidade e o êxito de suas carreiras estão estreitamente ligadas aos destinos da organização fascista, e, por isso, têm todo interesse em apoiar o fascismo em qualquer tentativa que este faça no sentido de consolidar sua posição política”. (Antonio Gramsci, no ensaio “Socialistas e fascistas”)

Em tempo: não creio no triunfo do fascismo no Brasil. Mas ela não fracassará pela resistência de nossas “instituições democráticas”. A covardia (ou mesmo cumplicidade) do STF e das Forças Armadas diante do que se passa é patética. E entre o fascismo e uma saída pela social democracia, a elite neoescravocrata sempre se alinhará ao fascismo, veladamente ou não. O fascismo tupiniquim não triunfará por conta de elevadas doses de burrice congênita do clã familiar no poder, pela mediocridade de seus asseclas olavistas e pelo fracasso econômico do neoliberalismo fundamentalista de Paulo Guedes.

Apesar disso, o fascismo poderá fazer um sério estrago, ocasionar até mesmo o derramamento de sangue de inúmeros brasileiros. Dificilmente os fascistas aceitam deixar o poder sem oferecer violenta resistência. Mas ainda há tempo para que se impeça a barbárie.

Resta a esquerda brasileira, nesse momento mais perdida do que cego em tiroteio, construir uma alternativa viável ao day after que se seguirá a esse tsunami fascista que nos atingiu.

Quem sou eu

Parafraseando Belchior, sou apenas um rapaz iberoamericano, como tantos outros por aí, mas que aprecia um bom papo de boteco, quanto mais pé-sujo melhor. Essa ágora etilíca que é o lenitivo para as dores do viver.

Nesse momento em que a cadela do fascismo despertou e pariu inúmeros rebentos, é preciso compartilhar experiências, entre uma e outra dose. Até que a matilha volte para o canil.

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